O bovarismo no século XXI

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“A pequena Bertha estava ali, entre a janela e a mesa de costura, caminhando sem segurança nos sapatinhos de lã e tentando aproximar-se da mãe para segurar-lhes as fitas do avental (…) Eh! Sai daí! – Repetiu Emma, empurrando a filha com o cotovelo. Bertha caiu junto à cômoda, ferindo o rosto no puxador de cobre. Saiu sangue.” (p. 121)

O livro Madame Bovary, do autor Gustave Flaubert (considerado o pai do realismo), é um clássico literário que teve sua primeira edição publicada em 1857. A obra foi temporariamente proibida na França, e levou com que Flaubert comparecesse ao Tribunal, condenado por conta de grande parte do enredo de seu livro envolver o adultério. Emma é a personagem principal do romance, casou-se com o médico Charles Bovary, um homem responsável, dedicado e completamente apaixonado por ela, como pode-se comprovar em um trecho do livro:

“Charles estava, pois, feliz e sem preocupações. Uma refeição a sós, um passeio à tarde pela estrada, um gesto da mão dela em seus cabelos, a visão do chapéu de palha no peitoril de uma janela, essas e muitas outras coisas, nas quais Charles nunca sonhara encontrar prazer, compunham agora a continuidade de sua felicidade.” (p. 38)

Já a protagonista, como pudemos ver na primeira citação, não é tão responsável assim. E ao contrário do marido, não encontrava satisfação em seu casamento. Durante a sua vida escolar recebeu diversas influências de escritos românticos, e permaneceu com eles em mente, sem amadurecer ou viver a realidade ao invés de seus ideais.

Mas por que “bovarismo”? Vejamos bem, Emma era uma mulher pertencente à burguesia da época, possuía luxos que já outras não os tinham -como por exemplo, não precisava trabalhar e contava com a ajuda de uma ama de leite e de uma empregada. Casada com um homem devoto, mãe, bem tratada e protegida, e ainda assim não era feliz. Sua insatisfação constante com a vida desencadeou uma série de problemas, como ter casos extraconjugais; maltratar a filha; ser uma consumista desenfreada; e ao final um suicídio.

“Ela não era feliz, jamais o fora. De onde vinha então aquela insuficiência em sua vida, aquela podridão instantânea das coisas em que ela tocava?” (p. 290)

O psiquiatra Philibert de Lastic, em 1906, em uma de suas teses caracterizou Emma como uma “degenerada” disse que “o bovarismo patológico” não passa de uma falta de capacidade para uma adaptação à realidade”. E foi a partir daí que o termo passou a ser usado também na psiquiatria, onde os comportamentos apresentados por Emma deu significado ao bovarismo como “capacidade de imaginar a si mesmo melhor do que se é”, um nível mais avançado da mitomania.

A escritora feminista Betty Friedan em seu livro A Mística Feminina, que trata desse comportamento similar ao de Emma em várias donas de casa da época (século 19), relatou que um médico da cidade de Cleveland denominou-o como síndrome da dona de casa. Segundo ela, uma das teorias para explicar era o nível crescente educacional das mulheres, fazendo com que elas sentissem que cuidar de um lar fosse insuficiente diante de suas capacidades. Algumas outras teorias relatam que a culpa do estado de Madame deve-se ao fato de seu marido ser “muito normal”, sem habilidades ou talentos diferentes, como se o fato de possuir qualidades de caráter excepcional não fosse o suficiente.

E agora no século 21 é notório ver o quanto as doenças psicológicas estão presentes na vida da maioria das pessoas. Alguns atribuem à era tecnológica, outros à tamanha responsabilidade que se tem de ter: “doutorado aos 25 anos”. E na verdade, não é a quantidade de esforços ou a pressão social exercida sobre as pessoas que causa esses transtornos, e sim o modo de viver e pensar pós-moderno que está ensejando essa crise existencial em parte da sociedade em níveis alarmantes.

O bovarismo hoje já faz parte da bipolaridade, Transtorno de Boderline, dentre outras doenças, causando uma normatização dessas ações e tratando do problema apenas com drogas, quando o cerne da questão é a visão de mundo, os valores deixados para trás, a constante busca por mudanças e reformulações em todos os aspectos da vida, em toda e qualquer estrutura: familiar, social…

Já atribuem critérios utilitaristas à verdade, relativizam a própria realidade. O hedonismo e o niilismo fazem parte subconsciente da mentalidade das pessoas. Parafraseando o escritor William Reich, em seu livro A Revolução Sexual, o cerne da felicidade da vida é a realização sexual, um exemplo de como os objetivos da vida humana que são transcendentais estão sendo resumidos à meros desejos e instintos.

Em 1857 o escritor Gustave soube do suicídio de uma mulher após ela ter tido uma relação extraconjugal com outra pessoa (um das teorias ditas que o influenciou a escrever o livro), e hoje, o suicídio de Emma é levado à sério nos debates, críticas e resenhas muito mais do que suas próprias atitudes anormais, como se a resolução de um problema fosse o foco na consequência, e não nas suas causas. Afinal de contas, há algo mais normal do que aparentar não ser normal hoje em dia?


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